O ativismo é 2.0. A repressão é medieval

“Quem te procurou? Quais os nomes? Você tem o contato deles?”. Essas foram as perguntas que tive que responder repetidamente durante os últimos seis dias para vários veículos de imprensa do país, a maioria deles de circulação nacional.

Tudo porque, em seu blog na revista Veja, o colunista Reinaldo Azevedo relacionou o registro do domínio mpl.org.br, em nome da Alquimídia.org e usado pelo Movimento Passe Livre (MPL), ao patrocínio de projetos culturais da associação, contemplados com editais públicos.

A Alquimídia é uma associação cultural que ajudei a fundar há cerca de dez anos, voltada para a comunicação e tecnologia. Trata-se de uma entidade que apoia diversos movimentos sociais e, principalmente, culturais. A Alquimídia foi criada justamente por um coletivo de mídia independente, formado por comunicadores que, na época, eram todos ligados ao site SARCASTiCOcomBR, cuja linha editorial é voltada para a cultura independente, crítica social e humor.

Pelo Sarcástico, diversas vezes realizei a cobertura de manifestações sociais. O Movimento Passe Livre, inclusive, é um dos movimentos que acompanho desde seu início, pois surgiu em Florianópolis, cidade em que resido. Em função do meu envolvimento com a internet, membros do MPL me procuraram em busca de auxílio para o registro de um domínio para o seu site. É importante deixar claro que o auxílio tecnológico para organizações e coletivos não formalizados fazia parte do escopo inicial da Alquimídia.org, e por isso providenciei o registro pela associação. Desde então, o site do MPL nunca foi usado de forma integral pelo movimento, que é descentralizado e utiliza uma infinidade de blogs em várias cidades do país. Apenas o coletivo de São Paulo optou por usar um subdomínio dentro da URL principal (saopaulo.mpl.org.br).

Com as recentes manifestações que aconteceram na maior cidade do país e, principalmente, devido aos seus desdobramentos dramáticos, tanto o Estado quanto boa parte da imprensa brasileira trataram de executar a prática padrão neste tipo de situação: identificar, responsabilizar, punir.

Só que desta vez, existem elementos novos nesta relação: a internet, a crise de representatividade na sociedade e o ativismo em rede.

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O MPL nasceu com uma geração cuja parcela considerável não se identifica com partidos, sindicatos e outras organizações formalizadas de gestão hierárquica e engessada. Essa geração olha com desconfiança para líderes estabelecidos. As garotas e garotos que estão nas ruas protestando, descobriram na web uma alternativa para se expressar sem a mediação de uma imprensa atrasada. Essas pessoas descobriram que, acima de tudo, as suas ideias podem ganhar força por elas mesmas, independente de projetos de poder ou negociatas. Praticam a disseminação das ideias em rede, que podem aproximar e levar pessoas às ruas.

O Movimento Passe Livre, assim como a Marcha das Vadias e tantos outros movimentos que se parecem mais com flashmobs do que com piquetes, não possui líderes. Essa é a única resposta que tenho dado a todos os que me perguntaram seus nomes.

Um grupo me procurou há anos atrás (não lembro, sinceramente, onde foi) e me pediu algo que eu poderia fazer, em favor de uma causa que julgo justa: o transporte público de qualidade para todos. Como uma coisa tão simples poderia ser usada de maneira tão vil? Hoje eu sei que pode, e está sendo usada.

Anos depois, no dia 7 de junho de 2013, por causa de protestos no dia anterior, a concessionária que administra a Linha 4-Amarela do Metrô de São Paulo entrou com um pedido na Justiça para impedir manifestações em suas dependências. Esse pedido foi direcionado à Associação Cultural Alquimídia devido ao registro do site. O recurso foi negado pela juíza Monica Lima Pereira, da 2.ª Vara Cível do Fórum Regional do Butantã, sob a justificativa de que “não demonstrou que os manifestantes tenham qualquer vinculação com a requerida Associação Cultural Alquimídia”.

No desespero de identificar, responsabilizar e punir, persegue-se o único elo identificável de um movimento social em rede: seu canal de comunicação. Essa estratégia é reproduzida pela imprensa, e na ânsia por atacar inimigos políticos e ganhar acessos, um colunista decide publicar uma trama na qual “uma associação cultural recebe recursos públicos desviados pelo PT para financiar protestos cujo desgaste político atinge o próprio Partido dos Trabalhadores”, conforme consta na coluna de Reinaldo Azevedo. Você pode ler novamente a frase, mas não conseguirá entender a lógica. Eu não entendi.

O mais impressionante é que essa tese difundiu-se com velocidade epidêmica. O resultado é que além da reprodução de acusações absurdas em blogs, sites e jornais, a foto do meu rosto foi parar em montagens nas mídias sociais, relacionando-me a com terroristas.

Minhas posições politicas são publicadas todos os dias na internet. Basta acessar meu blog para entender o quanto esta situação é, no mínimo, nonsense.

A Alquimídia.org é uma associação cultural que, como tantas outras, desenvolve projetos via editais e fundos de cultura. Projetos de cultura digital, mostras audiovisuais, produção de conteúdo. Esses projetos possuem cronograma, orçamento definido e prestação de contas. Uma acusação tão séria, baseada apenas na visualização de logomarcas do Governo Federal no site de uma instituição que não fez mais do que oportunizar um canal de comunicação, é mais do que uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais. É, também, um ataque à liberdade de expressão.

É óbvio que toda violência deve ser condenada, assim como é muito claro que existem infiltrados de toda ordem de motivações em grandes manifestações sociais. A questão é que nada disso muda o fato dessas manifestações ganharem adesão cada vez maior no país.

O problema, mais uma vez, não está na internet, mas no dia-a-dia das pessoas que pagam impostos, trabalham mais do que seus corpos aguentam e precisam usar um transporte público de péssima qualidade. E pagando caro por isso.

É nisso que os governos e a imprensa deveriam estar trabalhando: no entendimento dos motivos que levam as pessoas a protestar, e não na promoção de uma surreal caça às bruxas.

A cada tentativa de deturpação, os motivos só aumentam.

Antes de falar sobre endereços eletrônicos, é necessário tratar do Marco Civil da Internet no Brasil, e esta situação envolvendo o site de um movimento social é mais um exemplo da urgência desta pauta.

Da sua fundação até hoje, a Alquimídia mudou parte de suas atividades. Estávamos fazendo a transferência de domínios que não possuem ligação direta com projetos mantidos pela associação. Tivemos que acelerar esse processo em função do desgaste e perseguição que estamos sofrendo por todo o tipo de gente, insuflada por acusações infundadas de um colunista.

Em função dessa situação, a Alquimídia.org iniciou os trâmites burocráticos para a transferência de propriedade do domínio mpl.org.br para a COMPAS – Associação Internacional de Comunicação Compartilhada. A COMPAS é uma associação mantida por jornalistas e ativistas da Ciranda.net (da qual participo), que alimentam o portal Ciranda.net entre outras ações de comunicação, e trabalham em defesa do midialivrismo e da liberdade de expressão.

A maior ironia de toda essa situação é que se o site do MPL sair do ar hoje, os principais afetados não são os ativistas do movimento. São os próprios governos e a imprensa, que para tentar entender o que está acontecendo, precisarão buscar informação por informação nas mídias e redes sociais, pois é por meio delas que as pessoas se articulam, expressam e sonham antes de se encontrarem nas ruas.

Se eu sei quem são? Não. Mas seus filhos podem estar lá.

Se eu sei seus nomes? Não. Também não sei onde moram.

Mas conheço os seus sonhos.

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